
Caminho
HELENA
ENVELHECI E DAÍ?
Há quatro em mim.
Cheguei à velhice sem excluir do meu “eu” a criança, a adolescente e a mulher adulta que fui.
Acredito ter memória no singular, na qual se somam épocas, fatos, sentimentos, medos, alegrias, frustrações e amores.
A vida deu-me de presente o privilégio de ser quatro em uma só.
E, ontem, num domingo nublado, resolvi reuni-las para festejar a vida.
Preparei-me para, juntas, revolver o baú das lembranças.
Quem fala primeiro, perguntei do alto do meu tempo.
Logicamente sou “eu”, disse a criança trazendo as cores da inocência.
E, começou:
Disseram-me que quando nasci, enquanto eu chorava todos me sorriram.
Aprendi com eles a me sentir aceita, acolhida e amada.
Meu pai tinha um olhar de orgulho e realização.
Minha mãe, dolorida pelas dores do parto, recebeu-me como um troféu.
Meus avós e tias eram atores alegres da cena de recepção.
E o “eu” criança disse: “nunca vou deixar de ser e de estar presente e confiante”.
E o tempo me fez adolescente precoce, lembra?
O “eu” adolescente chorou, e as lágrimas voltaram temperadas de dor.
Como natural da fase havia em mim nebulosidade emocional.
A minha mãe elevou-me a condição de guardiã.
E o amor do meu pai foi percebido como segurança do casamento deles.
E o “eu” adolescente, na verdade, sentia frio.
As emoções e ansiedades, contudo, foram suavizadas pela maternagem amorosa da minha avó - dona Santa -.
Tantas vezes chamei pelo meu “eu” criança.
E o tempo me fez adulta, sem abandonar a marca da precocidade.
Uma escolaridade interrompida, um casamento inseguro, quatro filhos, a quebra da fantasia conjugal, o retorno aos estudos, o ingresso na carreira jurídica, outro casamento, um amor, a aposentadoria e o início de uma nova carreira forjaram meu “eu” adulto.
Como mulher adulta sofri o desconforto da dualidade presente pela concomitância das crenças e responsabilidades do mundo doméstico e a necessidade de provar competência e ganhos inerentes ao espaço público.
E, o relógio do tempo preciso e indiferente, marcou meu desembarque na estação da velhice.
Surpreendi-me!
De repente surgiu no espelho a imagem do “eu” de agora.
Atenta ao movimento da Vida sai do palco e aquieto-me na plateia.
Da plateia acompanho a dança das lembranças em várias cores.
Revivo o receber de carinho e cuidados; de amparo e confiança.
Recordo o escorrer das lágrimas e a tenacidade do seguir e buscar.
Aplaudo a coragem e o destemor; a presença amiga e a cultura da esperança.
Agradeço ao tempo que me fez envelhecida, mas viva.
Veio-me, naquele instante, o desejo de unir meus “eus”, para afinal vivenciar a unidade perseguida no percurso do caminho.
Neste unir-se o “EU”, se fez MAIÚSCULO.
De uma voz nasceu um coro formado por todos os “eus”, na comemoração do “EU idoso”.
Olho o palco que já habitei e um grito salta da minha garganta:
ENVELHECI E DAÍ?
E, pude finalmente, sorrir o riso da chegada.
Cheguei!!!




